MUSEU DO ENGENHO CARIRI.
O Instituto Cultural do Cariri (ICC), associação civil sem fins lucrativos, no ato de sua fundação, em 4 de outubro de 1953, previa em seu estatuto a criação de um museu do engenho. No entanto, isso nunca veio a se concretizar, pois, até então, o instituto não possuía sede própria.
Nos 65 anos de atividade, o ICC já demonstrou seu pioneirismo na manutenção e preservação da memória caririense em diversas ocasiões, como quando ajudou a fundar o atual museu da cidade do Crato, localizado no quadro da Igreja da Sé, pertencente à Fundação J. de Figueiredo Filho.
Felizmente, desde o ano de 2006, o ICC passou a ter sede própria graças a doações públicas e particulares. Contudo, o espaço não é suficiente para acomodar peças museológicas concernentes aos engenhos de cana-de-açúcar. E qual a razão de se criar um museu desta natureza?
As antigas máquinas estão sendo descartadas ou levadas para os ferros-velhos, a fim de serem vendidas no quilo. No “Cratinho de açúcar”, nenhum engenho “de rapadura” mais funciona, em formato artesanal ou manufatureiro, desmerecendo este seu doce apelido. Em Barbalha, antiga “Capital da Rapadura”, três ou quatro engenhos ainda fabricam a aguardente e rapadura. Em Juazeiro do Norte, a memória sobre a existência destes núcleos de produção está se perdendo, incluindo um dos mais importantes da região, o do Sítio Pau Seco, que pertenceu a Bárbara Pereira de Alencar. Estes números são insignificantes quando comparados às centenas de engenhos que existiram outrora!
O padre Antônio Gomes de Araújo diz ter encontrado um documento que aponta haver, no ano de 1735, um engenho “corrente e moente” no Riacho dos Porcos, de propriedade do capitão-mor Francisco Pinto da Cruz. Já o pesquisador J. de Figueiredo Filho afirma que o primeiro engenho do Vale do Cariri foi o Santa Tereza, entre Missão Velha e Barbalha, que, no ano de 1731, já funcionava e cujo senhor era o alagoano José Paes Landim. Todavia, na opinião de Odálio Cardoso, o engenho mais antigo da região caririense pertenceu ao baiano Antônio de Sousa Gulart (bisavô paterno de Bárbara Pereira de Alencar), tendo sido instalado, segundo o autor, desde o ano de 1718, no Sítio Salamanca, no atual município de Barbalha.
Durante os séculos XVIII e XIX, foram construídos vários engenhos no sopé da Chapada do Araripe. Um destes, chamado de Engenho da Serra, entre Nova Olinda e Crato, é apontado no inventário de coronel Francisco Alves Feitosa, em 1770. Próximo a este lugar, em 1785, havia outro engenho, movido a água, ou melhor, “corrente e moente”, no Sítio Cabreiros, de propriedade do coronel Joaquim Ferreira Lima, esposo de Desidéria Maria do Espírito Santo. Igualmente, em 1829, vizinho a este encontrava-se mais um engenho movido a água, no Sítio Fábrica, que pertencia ao recifense Francisco Pereira Maia Guimarães e Isabel Maria da Penha (sobrinha do coronel Joaquim Ferreira Lima).
Que pessimo caminho he o de Cuite! Mas que bellos sitios que são todas as fazendas do Cariri! Pequenas collinas formando sempre deliciosos valles regados por muitas aguas e aguas boas; quasi todas as fazendas são engenhos de moer cana de assucar cujo plantio alli não demanda graves cuidados. Desgraçadamente porém quasi não trabalhão assucar algum; o que fazem muito he rapadura, alimento ordinario do povo daquelles contornos até muito além do rio de S. Francisco para a Bahia; de sorte que os tropeiros e viajantes deste rio não comem outra couza, e aborrecem o uso da carne, gallinha, ou outra semelhante nutrição que lhes faz o mesmo que aquella fez aos meus escravos; desenvolveu-se nelles huma formidavel disenteria, depois que sahimos do Crato, onde tinhão dado tanta rapadura, que o Campello fazia pirâmides della sobre as cargas dos cavallos.
É interessante notar que, segundo Patroni, o comércio de rapaduras produzidas no Cariri cearense alcançava mercados distantes, como os do Rio de São Francisco e Bahia.
Outro viajante, o inglês George Gardner, também esteve na vila do Crato no início do século XIX, em 1838. Daí, indo visitar João Gonçalves dos Santos (filho primogênito de Bárbara de Alencar) no Sítio Pau Seco, encravado no atual município de Juazeiro do Norte, o britânico presenciou o funcionamento de um engenho todo feito de madeira:
Tive muitas ocasiões de ver nesse engenho, como se faz a rapadura. A moagem e o cozimento do suco da cana se processam ao mesmo tempo. O engenho é de construção muito tosca, compondo-se de uma armação com três moendas verticais de pau, entre as quais a cana passa para se expremer o suco que se recolhe num receptor embaixo, donde escorre para um cocho escavado no tronco de grande árvore. Passa-se a cana três vezes para que se extraia toda a garapa. Deste cocho, parte do líquido é levada de tempos em tempos, a pequenos tachos de metal, dos quais havia nove, enfileirados em pequenas aberturas sobre uma fornalha arqueada. Nas diferentes fases do processo, à medida que se faz a evaporação, o suco é despejado de um tacho em outro, até adquirir no último a desejada consistência. Transfere-se então para uma cuba escavada em sólida madeira e que se chama gamela. Aí fica algum tempo a esfriar, sendo então lançado em formas de madeira do formato e tamanho do tijolo comum, embora algumas se façam com a metade deste tamanho. Tiradas das formas, ficam a endurecer ainda por alguns dias e estão prontas para o mercado. As grandes vendem-se em Crato por dois vinténs, em Icó por cinco e em Aracati por quatro. As principais culturas de Crato são a cana-de-açúcar, a mandioca, o arroz e o fumo.
O autor também revela o material utilizado para fazer tais engenhos e carros de boi, como a madeira do pequizeiro e do jatobá, duas árvores ainda comuns nas imediações da Chapada do Araripe.
Mas as notícias sobre esses engenhos não param por aí, pois, entre os anos de 1859 a 1861, o médico carioca Francisco Freire Alemão também esteve na então província do Ceará, compondo a Comissão Científica de Exploração, que vagou pelo referido território até as imediações da Chapada do Araripe. Seguindo esse itinerário, do Icó em direção às Lavras da Mangabeira, Alemão se deparou com um engenho movido a água em pleno semiárido, no Sítio Formoso, cuja força motriz provinha de uma roda d’água acionada pela torrente que descia do açude através de canos:
A casa do engenho é grande e muito bem-feita; todo os pilares e paredes são de tijolo e barro e os alicerces, largos e fundos de pedra e cal. Todo o madeiramento é de aroeira e pau-d’arco, principalmente tirantes, frechões, vigas de grandes dimensões (tudo lavrado a enxó), caibros de pereiro serrados, ripões de cedro igualmente serrados. As moendas são de ferro, grandes e fortes, assim como todas as mais peças do mecanismo, e tudo é movido por água que vem do açude, que estará a umas 100 braças distante do engenho. A roda d’água tem 30 palmos de diâmetro, cisterna de tachos, caldeiras etc., [tudo] mui bom e bem juntado: casa de aguardente grande, cômoda, alambique moderno com excelentes aparelhos e utensílios. A água que move o engenho corre em grande parte por canos escondidos, vai à casa da caldeira e do (sic) aguardente servindo a diferentes usos. A casa do engenho é quadrada, tendo os lados de 119 palmos. O corpo do engenho é grande. É uma das fábricas de açúcar das maiores que tinha visto no Ceará. Ainda não está feita a casa da vivenda, e o Sr. Firmino a tenciona fazer sobre uma colina que fica por diante do engenho e sobremaneira a ele.
Alemão também informou que o escoamento da produção açucareira do Cariri (rapadura e aguardente) alcançava o Juazeiro (da Bahia), às margens do Rio de São Francisco, “84 léguas de distância”, onde os caririenses se abasteciam de peixe salgado, matulagem e outros gêneros.
Anteontem, quando íamos à serra, paramos no sítio [Lameiro] que foi do Tristão; aí estava o Sr. Montes, de quem obtive algumas notícias. Mostrou-se a porção da casa velha que tinha sido do Tristão e o lugar onde foi o engenho, que era pegado à casa. Mas disse-me ele que Tristão pouco tempo passou [n]aquele sítio, que o havia comprado em 18 ou 19, depois que saiu da prisão pelos movimentos revolucionários de 1817, que poucas vezes e por pouco ali estava, tendo a sua moradia na cidade com a família; e que em 23, começando de novo a revolta do Cariri, não foi lá mais. Disse que ele tinha tenção de fazer casa e melhorar o estabelecimento, mas não teve tempo de fazer; o que há dele são algumas mangueiras, que inda existem.
Outra questão com relevante importância diz respeito aos investimentos feitos em tecnologia pelos produtores do Cariri desde prístinas eras. Atualmente, tem-se disseminado que o primeiro engenho de ferro do estado do Ceará fora montado em Fortaleza pelo senador José Martiniano de Alencar, em 1836. Porém, esta informação não parece ser acertada, posto que, no ano de 1822, já havia chegado ao Cariri, vindo de Pernambuco, um engenho deste tipo, instalado no sítio São José, pertencente a Antônio Ferreira de Melo. Logo, presume-se que o primeiro engenho de ferro do Ceará localizava-se no Cariri…..
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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ALENCAR, Odálio Cardoso de. Origens do Cariri (1ª Parte). Fortaleza/Ceará: [s.n.], 1988.
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ARAÚJO, Padre Antônio Gomes de. Povoamento do Cariri. Crato /CE: Faculdade de Filosofia do Crato, 1973.
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá. Petrópolis/RJ: Editora Vozes Ltda, 1978.
FEITOSA, Leonardo. Tratado Genealógico da Família Feitosa. Fortaleza/CE: Imprensa Oficial, 1985.
FIGUEIREDO FILHO, J. de. Engenhos de Rapadura do Cariri. Fac-símile da edição de 1958. Fortaleza: Edições UFC, 2010.
_______. História do Cariri, Volume III. Crato/Ceará, Faculdade de Filosofia do Crato, 1964.
GARDNER, George. Viagem ao Interior do Brasil: principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. São Paulo: Editora da Universidade do São Paulo, 1975.
PARENTE, Filippe Alberto Patroni Martins Maciel. A Viagem de Patroni pelas Províncias Brasileiras: De Ceará, Rio de S. Francisco, Bahia, Minas Gerais, e Rio de Janeiro, nos anos de 1829 a 1830. Parte I. Rio de Janeiro: Tipografia Imparcial de Brito, 1836.
VIEIRA, Vanius Meton Gadelha. O Primeiro Engenho de Ferro da Província do Ceará. Disponível em: <http://www.mauxhomepage.net/historia/engenho.htm>. Acesso em: 6 de abr. de 2018.
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