DESCENTRAMENTOS: JACKSON MACAXEIRA CARNAVALIZANDO IDENTIDADES
Tiago Alexandre dos Santos* Orientador: Roberto Marques†
Procura-se abordar alguns processos de deslocamentos e agenciamento identidades através de narrativas orais articuladas, expressas e negociadas pelo sujeito Francisco Cândido de Barros, popularmente conhecido na cidade de Barbalha-CE como Jackson Macaxeira. Memórias que se fazem e fazem ser durante os períodos de Carnaval na cidade. Identidades que deslocam aos sons das baterias das escolas de samba e das performatividades reivindicadas pelos personagens que o corpo se dispõe a (re)viver.
Palavras-Chave: Identidades; Narrativas Orais; Carnaval;
ALGUMAS NOTAS PARA INÍCIO DE CONVERSA
Para a compreensão do que proponho aqui, é preciso que se considere as características mutáveis das memórias. Pensemos estas, como nos ensina Michael Pollak (1992), enquanto algo condicionalmente social, construído numa coletividade, e que, portanto, sofre processos de mediações e simultaneamente transformações constantes, é isso que permitirá os deslocamentos e as experiências da nossa pessoa/personagem (GOLÇALVES, 2012) nos tempos e espaços salvos, articulados, expressos e negociados em suas memórias/experiências narradas.
* Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Regional do Cariri – URCA – Bolsista de Iniciação Científica URCA – CNPQ. Email: tiagoxandee@gmail.com
† Professor do PPGS/UECE e do departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri. Doutor em Antropologia Cultural pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da IFCS/UFRJ.
Nossas histórias se situam num transito entre os anos de 1990 a 2017, aqui, Jackson e Carnaval são memórias/experiências que se fazem no tempo presente. Penso assim identidades enquanto construções marcadas por processos intensos de modulações através das experiências. Jogos de identidades (HALL,2015) que possibilitam produções de vários corpos em um ser ou vários seres em um corpo, localizadas em espaços e tempos simbólicos e, portanto, específicos.
Considerando que determinadas formas de comunicar só fazem sentido se enquadradas numa determinada forma/gramática partilhada e apreendida, penso ‘códigos-territórios’ (DELEUZE apud PERLONGHER, 2008). Rede de sinais fornecidas, permitidas, comunicáveis e agenciadoras em espaços delimitados. Através disso, abstraímos as falas do nosso narrador e discutimos algumas formas personalísticas que este sujeito produz e apresenta para si e para os outros através de fantasias carnavalescas.
DA PRAÇA À PASSARELA
Era uma manhã de domingo, estava eu, prestes a encontrar Jackson na Praça da Estação em Barbalha, em meio a cantos de pássaros e gritos dos cobradores de vans anunciando seus destinos. Na manhã do dia anterior, havia combinado com Macaxeira através de uns amigos, essa conversa.
Como combinado, ele estava ali, sentado nos bancos da rodoviária com suas pernas cruzadas, seus cabelos brancos ao vento, o corpo um pouco curvo vestido com uma camiseta da tradicional Festa de Santo Antônio de Barbalha. O avistei e fui à seu encontro, nos cumprimentamos. Ele sugeriu que sentássemos em um espaço do coreto da praça. Na ocasião, apresentei a proposta da conversa, e nosso protagonista passou a se desdobrar na reativação de suas lembranças, desenhando através da linguagem falada, territórios, experiências e identidades, que locomovem nossas interpretações.
Macaxeira é um carnavalesco. O nome “macaxeira”, revela ele, foi um apelido com que lhe batizaram após uma queda com um balaio de macaxeira no Mercado Público Municipal de Barbalha onde sua tia, Dona Deca, possuía uma banca. Durante a queda ele disse que um sujeito chamado Izin de Maria de Moça, gritou: ¬ Macaxeira caiu! ¬ e, complementa: ¬E daí pegou! ¬. No início, diz não ter gostado, mas depois, durante a gravação de um filme sobre Padre Cícero, um sujeito passou e gritou: ¬
Macaxeira!¬ Ele relata ter ficado irritado, mas um dos atores presente no local apresentou-lhe alguns benefícios de ser “macaxeira” e, assim, ele aprendeu a gostar.
O Carnaval é uma atividade ordinária da agenda brasileira. É nesse tempo que o extraordinário acontece sob um aval de permissibilidade característica da celebração. É nessa festa constituída por meio de ritos (CAVALCANTI, 2006) que nosso protagonista se insere e diz ser constituído. Para isso, ele embaralha suas experiências pessoais com datas da vida pública e símbolos da nação, ao anunciar:
Eu já nasci com sangue carnavalesco. Se eu tenho descendência indígena né, todo índio é um carnavalesco! Eu vejo isso! Para mim o índio é um carnaval!
¬Eu adorava ser baiana! ¬ Era assim que Macaxeira começava a delinear as possibilidades de ser no carnaval. Contava sobre suas passagens pelas escolas de samba, e seus destaques devido a incorporação desta personagem. Com entusiasmo, falava sobre cores e representações. A dimensão material da memória parece ser o corpo. É essa dimensão que se manifesta na aparência gestual. Havia nas falas de Jackson uma espécie de magia gramatical que desloca nativo e antropólogo, e nos inseria na passarela.
CARNAVALIZANDO IDENTIDADES
Quem é esse rapaz, que tanto androginiza, que tudo me convida pra carnavalizar?
(RUBI)
Segundo Jackson, ¬O carnaval é uma festa do povo! E são nesses três dias que você pode ser o que quiser, pois o importante é a diversão! ¬. Nessa fala, o narrador reitera a caracterização do carnaval dada por Cavalcanti, sobre permissibilidade e fluidez da festa, ao tempo em que nos fornece a informação da existência de uma rede de sinais diferenciadas e localizadas nas relações ali estabelecidas. Os enquadramentos delimitadores de fronteiras identitárias presentes na ordinariedade dão lugar a agência do sujeito sobre suas incorporações de/para representações.
Em contrapartida aos processos normativos de construções dos corpos sujeitados/enquadrados durante a História, convido o leitor a pensar aqui, os corpos não enquanto meios passivos significado a partir de uma discursividade externa reguladora,
mas sim enquanto superfície construída a partir da experiência. Penso com isso a não reiteração de uma estilização corporal das representações, e isso permite acreditar que não teremos uma pessoa ‘imitando’ outra pessoa, mas sim a própria pessoa/personagem incorporada num corpo que agora é seu, e é seu porque os códigos-territórios o marcaram para “ser o que quiser”. Em síntese, não me proponho a pensar que Jackson está vestido de alguém, mas sim que ali está presente o próprio alguém agenciado.
Ora, nossa pessoa/personagem não está reivindicando para si o reconhecimento externo de outra, uma identidade de gênero que borrará as fronteiras da ordinariedade. No entanto, ele também não está a fazer uma auto representação pelas redes dos códigos carnavalescos. Ele está a reivindicar naquele momento o reconhecimento de uma identidade que pertence aquele espaço/tempo e só. Pensar que Jackson está a imitar/fantasiar alguém/algo reitera a identidade que ele assume fora da celebração, pois considera-se que o Jackson ainda está lá. O que sugiro aqui é pensar que ao considerar as possibilidades de ser no carnaval, possamos pensar que o corpo e sua expressividade em espaço delimitado, apagam identidades outrora performatizadas, e que aquele corpo não deve reforçar a pessoa que estaria a “imitar”, pois a incorporação de outro alguém/algo faz significar aquela superfície corporal enquanto original daquele alguém/algo em determinado espaço. São esses jogos das identidades (HALL, 2015) que constituem e tensionam as narrativas e as experiências, que estou chamando de “carnavalizar identidades”. Vejamos a seguir na exemplificação.
Judith Butler(2016), ao considerar e historicizar à luz de outros pensadores os processos de constituição dos corpos gêneros ao longo da história, critica a narrativa de um status ontológico desvinculado de uma complexidade de atos que constituem a realidade. Ela utiliza essa argumentação para considerar que atos e gestos produzem na superfície corporal o efeito de uma substância interna que tenta expressar uma essência. No entanto, é justamente pelo fato dos corpos/gêneros serem marcados por essas performatividades que eles não têm sentido se separados de várias outras ações que comporão também a realidade. Mas adiante, ao desenvolver seu pensamento, ela nos ensina que a “própria realidade é fabricada como uma essência interna”(BUTLER, 2016: 235):
Essa própria interioridade é efeito e função de um discurso decididamente social e público, da regulação pública da fantasia pela política de superfície do corpo, do controle da fronteira do gênero que diferencia interno de externo e, assim, institui a “integridade” do sujeito. (BUTLER, 2016;235)
Butler continua a falar sobre a não percepção das regulações e produções dos gêneros estarem atreladas a uma interioridade do “eu”, essa característica dificultaria o processo de reconhecimento das noções de “fabricação sobre a interioridade inefável de seu sexo ou sua verdadeira identidade” (BUTLER, 2016: 236). Logo, ela propõe um deslocamento de visão acerca das origens políticas e discursivas das identidades, e nos ensina que:
Se a verdade interna do gênero é uma fabricação, e se o gênero verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita sobre a superfície dos corpos, então parece que os gêneros não podem ser nem verdadeiros nem falsos, mas somente produzidos como efeitos da verdade de um discurso sobre a identidade primária e estável. (BUTLER, 2016: 236).
Considerando algumas questões levantadas nessas premissas, passo a localizá-las nas falas de Jackson.
Jackson nos diz:
Eu sempre, a minha ala mesmo, era a ala das baianas, eu adorava ser baiana, eu fui destaque da [Escola de Samba] Asa Branca, em Juazeiro do Norte. Fui destaque na Barbasamba. Sempre eu era destaque de baiana! Fiz homenagem a Martha Rocha‡ através da Dona Zuleica Faria nos Cordão dos Puxa Saco. Foi uma fantasia caríssima de baiana, toda estilizada com frutas, e tipo uma Carmem Miranda, mas estilizada da Martha Rocha!
Falar da Marta Rocha é pensar necessariamente uma narrativa nacional sobre beleza feminina. A menção desta em um carnaval no interior do Ceará só se justifica devido a fama de Marta Rocha como Miss Brasil e a perda do título de Miss Universo, causada supostamente pela presença de algumas polegadas a mais em seus quadris. Esse episódio, contado e recontado, marca a figura de Marta Rocha como personagem nacional. Assim, compreendemos Martha Rocha enquanto elemento selecionado para a
‡ Eleita rainha da beleza brasileira em 1954, foi a primeira Miss Brasil, e perdeu o primeiro lugar no título Miss Universo devido a duas polegadas a mais nos quadris.
representação de uma legítima beleza nacional. Marta Rocha, como toda imagem- síntese, não existe em si mesma, mas como unidade fabricada e nacionalmente conhecida através de práticas discursivas sobre beleza.
Esse processo de desnaturalização nos ensina que os ícones incorporados através de uma fantasiosa origem natural são uma imitação, um tornar-se narrativa construída socialmente. Logo diremos que Martha Rocha é a imitação da narrativa. E que, portanto, podemos interpretar ainda aquilo que Jackson nos conta enquanto uma paródia de uma ideia de uma originalidade. Como nos lembra Butler(2016), ainda que não especificamente dentro dos sistemas de redes a partir do qual falamos, mas que pode ser usado para nossas interpretações:
A noção de paródia de gênero aqui defendida não presume a existência de um original que essas identidades parodísticas imitem. Aliás, a paródia que se faz é da própria ideia de um original; assim como a noção psicanalítica da identificação com o gênero é constituída pela fantasia de uma fantasia, pela transfiguração de um Outro que é desde sempre uma “imagem” nesse duplo sentido, a paródia do gênero revela que a identidade original sobre a qual se molda p gênero é uma imitação sem origem. (BUTLER, 2016: 238)
Falar da Marta Rocha é pensar necessariamente uma narrativa nacional sobre beleza feminina, tendo em vista que a aparição desta no carnaval do interior do Ceará é devida a sua fama enquanto Miss Brasil e a perda do título de Miss universo, causada supostamente pela presença de algumas polegadas a mais nos quadris. Esse episódio, contado e recontado, marca a figura de Marta Rocha como uma personagem nacional. Assim, compreendemos Martha Rocha enquanto elemento selecionado para a representação de uma “legítima” beleza nacional, logo, ela não existe em si mesma e devido a isso torna-se conhecida nacionalmente, ela é uma unidade fabricada através de práticas discursivas sobre beleza. Esse processo de desnaturalização, nos ensina que os ícones incorporados através de uma fantasiosa origem natural, são uma imitação, um torna-se de uma narrativa construída socialmente, eles não existem em si mesmo. Logo diremos que Martha Rocha é a imitação da narrativa, e que, portanto, podemos interpretar ainda aquilo que Jackson nos conta, enquanto uma paródia de uma ideia de uma originalidade. Como nos lembra Butler, ainda que não especificamente dentro dos sistemas de redes (carnaval) que estamos inseridos, mas que podem ser usadas para nossas interpretações:
A noção de paródia de gênero aqui defendida não presume a existência de um original que essas identidades parodísticas imitem. Aliás, a paródia que se faz é da própria ideia de um original; assim como a noção psicanalítica da identificação com o gênero é constituída pela fantasia de uma fantasia, pela transfiguração de um Outro que é desde sempre uma “imagem” nesse duplo sentido, a paródia do gênero revela que a identidade original sobre a qual se molda p gênero é uma imitação sem origem. (BUTLER. 2016: 238)
Como visto na discussão acima, os códigos-territórios (PERLONGHER, 2008) do carnaval permitem deslocamentos de identidades e abrem espaços para outras contextualizações e significações, e é isso que possibilita pensar que naquele momento não havia tinha um homem vestido de mulher, não era o Jackson, era a Martha Rocha, incorporada, materializada. Pois se mesmo aquela tida como original era uma imitação de uma fantasia sobre beleza nacional a partir de marcadores de gênero, como dizer que aquela Martha naquele tempo/espaço não seria autêntica?
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